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Imagens eram um privilégio da humanidade, até a Inteligência Artificial surgir

Imagens são criações exclusivamente humanas. Isso significa que todas as imagens que você tenha visto na vida foram criadas por algum ser humano. Isso vai mudar profundamente a partir de agora.


imagem representando A garota com brinco de pérola de Johannes Vermeer
Minimal Renaissance - Fuat DEGIRMENC London



Até recentemente, todas as imagens que povoavam a consciência humana e as relações sociais eram criadas ou imaginadas exclusivamente por seres humanos. A criação de imagens sempre foi vista como intrinsecamente humana. E a cultura humana se manifesta por meio de imagens antes mesmo do conceito de história, como vemos nos registros da relação da humanidade com o cosmos, o universo imaginado, em que se utilizaram principalmente de imagens míticas.


Imagens são interfaces criadas com intencionalidade, representando ou mediando os conceitos de artistas individuais ou de comunidades culturais inteiras. Seja como instrumentos políticos, ou como representações do divino, as imagens sempre estiveram entre algumas das mais importantes características definidoras do que é ser humano. A capacidade de modelizar com diria Yuri Lotman, fundador da semiótica da cultura, isto é, criar modelos que nos auxiliam a organizar e compreender o mundo encontra nas imagens seu principal suporte. Nisso, até hoje, nada ou pouco mudou. A humanidade ainda retorna às imagens para entender o mundo ou dialogar com os mistérios.


As imagens são pontos de referência, superfícies às quais retornamos de tempos em tempos para buscarmos congruência sobre tudo que nos cerca. Dessa forma, necessariamente, dependemos delas. Evidentemente, assim que o tempo passa, essas mesmas imagens se tornam valiosas peças arqueológicas; artefatos da arqueologia do pensamento humano, como diria Foucault.


Por todo o curso da história da humanidade as imagens foram criadas como produtos de conflitos, relações, projeções e todas as demais veleidades humanas. Isso faz com que as imagens não possam ser compreendidas senão como sínteses da experiência humana mais direta, são produtos dessa relação; onde há humanidade, brotam imagens. Mas a nossa relação com elas não é assim tão simples, porque imagens, como revelações, exigiam um mediador, alguém capaz de trazê-las à existência adequadamente. Não podemos considerar que qualquer pessoa crie uma imagem como se tornou tão simples fazer hoje em dia, ao menos, não foi assim na história. A relação da humanidade com as imagens sempre envolveu um grave tom de mística, as imagens são revelações dos mistérios, janelas para os segredos, e exercem profundo poder sobre a humanidade por essa razão.


Nesta monta, a criação das imagens fantásticas ficou nas mãos de raros (e caros, muito bem remunerados como nos mostram registros recuperados da época) artistas que atuavam como médiuns, manifestando a mediação entre a realidade e o mistério através de suas imagens. Os artistas ou grandes pintores na história conservavam o sentido místico de "reveladores", como se pudessem "fotografar" a verdade para além da realidade. A realidade nunca foi desejada, assim surge a interface humana com a realidade, que chamamos de verdade.


Essas imagens tradicionais surgidas desses profundos conflitos históricos na cultura humana, são chamadas de imagens ontológicas, no sentido de que são fenômenos manifestados pelas trocas simbólicas das relações humanas mais diretas. São imagens que brotam da vida, como um subproduto do ser humano. “Imagens ontológicas” são definidas como imagens que se originam da relação singular entre a consciência humana e sua compreensão de si mesma e do mundo. Elas estão profundamente ligadas às condições históricas da vida humana, são "realidades mediadas por subjetividades humanas" e toda "imagem ontológica" carrega, em sua essência, traços de uma cosmovisão humana. Dessa forma, podemos dizer que reflete o "DNA da humanidade" e conta mais sobre quem gerou a imagem, do que o que pretendiam demonstrar com ela.


Historicamente, as imagens tradicionais não eram criadas por meio de captura técnica, mas eram fruto da profunda interação entre a consciência e o mundo. O ato de olhar o céu e interpretar as constelações é dado como exemplo do desenvolvimento do imaginário humano e da criação dessas imagens.


As “imagens tradicionais”, termo usado por Gilbert Durand, estão intimamente relacionadas às “imagens ontológicas” de Vilém Flusser e são descritas como criadas por atos criativos humanos e como um privilégio simbólico exclusivo da humanidade até a chegada da IA.


Imagens técnicas


Mas o curso da história em que as imagens eram realizadas por mediadores artistas, que traziam por meio de sua arte a explicitação de um conceito de verdade, se altera profundamente com a criação de sistemas mecânicos de geração de imagens. Aqui encontramos as imagens técnicas, especialmente a partir do final do século XIX, no advento da fotografia.



Pela primeira vez na história, aparelhos mecânicos se tornaram capazes de registrar instantâneos da realidade, e essas imagens não mais realizadas pela ação biológica, pelo impacto da consciência humana com a realidade, mas registradas pela ação mecânica, inaugura um universo de imagens técnicas - alcunha também devida a Vilém Flusser. As características são completamente diferentes, a partir do princípio de que a verdade que se almeja demonstrar em uma pintura exija a definição de todos os elementos que devem aparecer no quadro. Isso ocorre por um motivo muito simples, um quadro se inicia com uma tela em branco. Tudo o que aparece na pintura deve ser deliberadamente escolhido para estar lá, e composto, justaposto, orquestrado deliberadamente. Com as imagens mecânicas isso se altera profundamente, porque em uma fotografia - assim como qualquer registro como filme ou vídeo - não é possível iniciar com uma tela em branco. O mundo já está preenchido de coisas, e resta à criatividade escolher o que não se deve demonstrar para os fins comunicativos desejados. Mudamos de um modelo de imagem inclusiva para o modelo de imagem excludente na sua composição. A intencionalidade se revela pela escolha do que não gostaríamos de mostrar. Mas ainda neste estágio, a escolha que configura a composição final é humana; o fotógrafo faz o corte.


Mas a tecnologia que registra as imagens técnicas se alterou no curso da história. Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro que aborda a antropologia da imagem apresenta essa transição como aquela vinculada às revoluções industrial e virtual. A industrial trouxe a automação, a capacidade de reprodução infinita de peças iguais. A reprodução é indeterminada, seu fim é determinado pela ação humana, o botão "stop", o desligamento da máquina. O segundo passo após a automação, estágio em que, igualmente, já estamos profundamente embarcados, é o da programação. Para Flusser, a programação é a capacidade da máquina determinar o momento em que deve parar, o que reflete uma decisão tomada a partir de determinações previstas no início do seu processo.


Programação reflete o estágio em que as máquinas executam sozinhas seus processos, entretanto todas as possibilidades combinatórias já estão presentes de alguma maneira como possibilidade desde o início desses mesmos processos. Elas estão, por esse motivo, programadas. Quando encontram o status esperado, cindem com o funcionamento, cessam de trabalhar, porque assim alcançaram o fim da sua rotina. A rotina é esse processo de programação que executa uma sequência de movimentos dentro de uma lógica pré-programada, que inclui nela, o a combinação esperada em que deve parar.


As imagens técnicas, esse novo tipo de imagem, são essas imagens florescidas do humano equipado de aparatos de captura, tráfego, replicação e deleção de imagens. E para que isso funcione, - o aspecto mais importante - todas essas imagens precisam ser tornadas pontos. Elas não trafegam como quadros transportados em um museu, nos braços de um operador de transporte, elas são compostas e decompostas constantemente. A característica mais propriamente definidora das imagens técnicas é justamente a sua essência desintegrada, pulverizável, composta de recomposta por milhões de bits e partículas. Quando transportadas, trafegam em linha, tornam-se textos, e se reagrupam novamente no novo local, assim sistemas digitais remontam imagens incessantemente.

Eis os dois tipos de imagens historicamente disponíveis, as ontológicas e as técnicas; primeiro temos as imagens geradas por seres humanos no interior de suas vidas, e então aparecem as imagens geradas por máquinas. Essas máquinas são também criadas por seres humanos. Temos uma exponencialização da abstração.


Imaginário da Inteligência Artificial

As imagens técnicas, em contraste com as imagens ontológicas, são frequentemente criadas através da captura mecânica do mundo, como a fotografia. No entanto, mesmo estes foram inicialmente influenciados pela estética das imagens tradicionais (criadas pelo homem). Com o surgimento da IA, as "imagens técnicas" agora também incluem imagens geradas sinteticamente, limitadas pela lógica de programação da IA. Nesta condição, elas necessariamente refletem uma redução nas complexidades simbólicas anteriormente transmitidas por imagens criadas pelo homem.


Flusser distingue imagens tradicionais como "superfícies abstraídas de volumes" de imagens técnicas como "superfícies construídas com pontos", e com respeito à sua particularização, descreve ainda as tecnoimagens como sendo de dimensão zero, construídas a partir de bits ou pixels.


O processo técnico de criação de imagens influencia profundamente seu status na cultura humana. A experiência de humanos arcaicos criando imagens é totalmente diferente das imagens capturadas mecanicamente e das imagens criadas por inteligência artificial sem mediação humana.


As novas imagens refletem limitações dos sistemas que as compõem? Podemos realmente considerá-las apenas como recombinações de imagens humanas anteriores? Quais impactos dessas imagens dissociadas dos fluxos sociais e políticos sintetizando uma realidade idealizada? Como alteram nossa visão sobre o mundo e nós mesmos? Essas são algumas das questões do momento.


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