Arte, uma resposta a Rita Von Runty
- Marcus Bruzzo
- 22 de jan.
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de jan.

Uns dias atrás ocorreu uma troca interessante de mensagens sobre o conceito de arte. Isso aconteceu a partir de um vídeo meu no instagram, cujo título era: O Cinema americano não é arte. Disse isso, e elaborei o argumento, sob o postulado de que a indústria do cinema norte-americana é, reconhecidamente, uma indústria mais do que um exercício artístico qualquer, por conta dos fins aos quais almeja. Na ocasião específica, citei o cinema de franquia dos Estados Unidos, promulgado por Steven Spielberg e George Luccas na década de 80, estritamente, um modelo de negócio como decisão de cinema.
Nesse contexto específico dos filmes e do cinema, a divisão entre indústria e arte é bastante clara, e talvez até mesmo seja uma das indústrias mais simples de fazer essa dissociação, uma vez que é de conhecimento amplo (inclusive dos profissionais que nela trabalham) que seus trabalhos não são "de fato" elaborados rumo a uma peça artística, mas a um produto de entretenimento minimamente rentável. Acrescento a essa visão o fato da minha própria experiência pessoal em ter trabalhado por diversos anos na indústria do audiovisual, e a percepção geral dos profissionais dessa indústria é de que fazemos produtos, com uma variação mínima de expressividade artística no seu interior.
Em conclusão, uma distinção seria a que a indústria norte-americana de cinema é uma indústria e não um exercício artístico, porque o objetivo final é a criação de um produto que gere dinheiro. Neste caso a mão-de-obra onde subsistem esforços minimamente artísticos está empregada na construção dessas peças de entretenimento cujo fim é ser um produto. A expressão artística, como campo social, opera inversamente, onde se utiliza o dinheiro como meio para realização de uma expressividade, sendo a expressividade o objetivo.
Quando desta comunicação, recebi a participação em forma de um comentário de Rita Von Hunty, famosa personagem do cenário intelectual político brasileiro. A despeito da diferença de visões que seguem abaixo, exijo o registro sobre o reconhecimento sobre sua contribuição para o diálogo democratizante do país, que é de imenso valor, sobretudo em processos pedagógicos de ingresso a pessoas não acostumadas a questões basilares dos espectros políticos. Com isso em mente, segue o comentário, e minhas reflexões aqui registradas.
RVH: Acho importante eu vir aqui e dizer, como advogada do diabo, que "arte" é um efeito discursivo, produzido por uma elite, para preservar seus valores e seus significados como superiores aos demais. A "distinção" entre "arte" e "entretenimento" é sempre uma "habilidade de poucos" é um fazer de aristocrata, de alguns com a "sensibilidade" ou o "repertório" necessário. É uma distinção que revela mais de quem distingue do que do objeto distinguido.
MB: Arte de fato é um efeito discursivo, entretanto nem sempre produzido apenas por uma elite como ferramenta de gestão de poder. Isso significaria aceitarmos que toda manifestação artística fosse redutível ao fim de lucro, e me parece exacerbado supor que não haja artistas que dediquem vidas inteiras à expressão, a um propósito movedor, derivado de suas crenças e cosmovisão.
Então sobre o quê falamos quando dizemos “arte” afinal? Bom, "arte" é um texto social específico, que move estética e fazeres, técnicas e instrumentos, na direção de uma expressividade. Como o jogo é um campo cultural com regras próprias, como o trabalho é outro e a religiosidade ainda outro. Cada um configura um texto com regras próprias, ainda que possam (e geralmente são) sobrepostos acidental ou intencionalmente.
Mas negarmos essa autonomia da arte como campo confere à economia ou política que precederiam a arte um determinismo naturalista; significaria dizermos que na cultura, os outros são textos naturais, arte não. A arte deriva de textos anteriores, como a política e economia, e como produto dela, a arte é instrumento de manipulação ou distinção. Não trato arte como derivativo de política simplesmente pela razão de que a arte e a política são linguagens distintas ainda que potencialmente sobreponíveis. Aqui, é importante distinguir ainda o PoliticO da política, sendo o Político o abarcante conceito da vida em comunidade social, tudo é político conquanto somos animais sociais. Arte é do político e não da política, neste sentido. Política refere-se aqui, aos engendramentos burocráticos e instituições com seus atores. Arte é do político como a vida social é, mas não deriva automaticamente da política, sendo a intersecção em geral intencional.
Arte deve ser, portanto, compreendida como uma plataforma própria com todas as suas variações históricas. Plataforma com códigos próprios, que eu utilizei a terminologia de Texto cultural, pela esteira de Yuri Lotman, fundador da Semiótica da Cultura, e corrente de onde derivo meus pensamentos, mas podemos muito bem nos apropriarmos da terminologia de Bourdieu quando se refere a “Campo”. Arte é um campo, política é outro. Textos e campos possuem em comum o fato de que ambos têm, como regras internas, códigos próprios, ou seja, sistemas de relações com regras internas, e estas regras fazem com que campos ou textos culturais se distinguam de outros campos ou textos.
Agora, a arte como campo não produziria, ela mesma, produtos
Não estariam, os resultados do processo artístico, também embrenhados nas tramas econômicas das trocas de mercadorias?
Podemos analisar pela seguinte perspectiva; Todos os artesãos prestam serviços alguém, e é muito comum a confusão de que este serviço faça sua de arte um produto, afinal, paga-se para um resultado. Tudo depende do fato determinante sobre o objetivo desta arte. Se o artesão modela a sua arte para alcançar sucesso financeiro, portanto está sujeito aos ventos do mercado, e modifica sua criação para a venda, ele cria produtos. Então, se o artesão é especializado em uma manifestação artística específica, e por isso é contratado para que realize a sua arte livremente, dentro do valor que achou justo para execução do seu trabalho, é uma manifestação artística, como o Maneirismo instaurou no ocidente. Por que chamamos de Michelangelo a Diego Rivera de artistas? Porque ele se enquadram neste segundo exemplo. Diego Rivera, que inclusive fez a sua arte livremente nos muros do Rockfeller Center em 1932, e o contratante, Rockfeller, não gostou da arte e mandou derrubar a parede em 1934. Nestes o dinheiro não é o objetivo, ele é o meio para realização da arte, que é o objetivo. Nenhum artista abriria mão do dinheiro, afinal, sua obra de arte pode valer milhões e ele até mesmo enriquecer por meio dela. Desde que as decisões criativas não sejam modeladas para fins de venda, mas que a venda seja o que viabiliza a arte final.
Então arte é um texto social de natureza expressiva, que embora esteja sujeita as via habilidades técnicas e imposições econômicas do seu tempo, apresenta objetivo expressivo como diferenciação dos textos políticos, ou meramente econômicos.
Vale considerar o paralelo bastante comum na música, sobre questões similares. O artista faz a música que ama, até que seja controlado por um produtor, e este produtor passe a ter determinação sobre a estética final da música produzida pelo artista. Quando isso acontecer, o artista não produz mais do que produtos. Aqui reencontramos a questão de Hollywood e dos cortes finais dos filmes feitos pelo diretor executivo, que coordena o investimento para criação de produtos rentáveis no entretenimento.
O diretor do filme geriu a criação de um produto aprovado pelo diretor executivo, que dá a aprovação final. O filme e a música Pop, (funk, sertanejo, rock e criações comerciais que existem no interior de todos os gêneros) são resultados de decisões data-driven, de índices, pesquisas de mercado, indicadores de likes e plays, que guiam os próximos produtos. Nada disruptivo está contemplado na métrica, o que exclui a liberdade expressiva podando-a pela raiz. Bourdieu traz ainda a questão da "autonomia da produção", o que mais precisamente se relaciona com o postulado que apresentei, em que arte seja buscar dinheiro para realização de uma ideia, oposto a mero produto de entretenimento, que é buscar ideias para realização de dinheiro. Essa autonomia da produção, que torna arte instrumento viável de resistência, é um espaço relativamente novo na história ocidental, que Arnold Hauser em sua imensa obra data do Maneirismo.
Sobre a arte ser tomada como um conceito criado pela elite pra controle e diferenciação, encontramos a seguinte situação. Arte, em diversos momentos, foi na história e segue sendo plataforma de resistência. Ao restringirmos arte a um "discurso de elite" - mesmo frente ao fato de que arte é inegavelmente feita em periferias (urbanas e intelectuais) como ressonância ou resistência - podemos acabar por reforçar que o "fazer artístico" exija uma "episteme privilegiada" reforçando a tese da erudição e excluindo a arte como educação potencialmente emancipadora. Isso significa que, se reconhecermos que a arte seja um campo distinto da política (embora possa ser realizado junto) acabamos reforçando que a arte é uma coisa feita apenas com requintes de erudição, e que que ao meu ver, incorre no grande erro.
Ainda, distinção entre "arte" e "entretenimento" tomada apenas como "fazer aristocrata" (que é fato em si), não deve nos permitir ignorar que arte de resistência também deva fazer essa mesma distinção, para não ter sua expressão engolida por mercado, como jazz o foi no início do XX, o rock nos 60 e o Funk carioca nos 2000; resistência > produto de resistência > produto. Arte de resistência é oposição a entretenimento como produto intelectual. Já a "sensibilidade" artística é inegavelmente uma falácia histórica armada para distinção, porque não trata "da arte", mas de "alguma arte", a "boa arte". Neste aspecto, a arte é distinção, quando se utiliza da arte pelo discurso de supostas sensibilidades presentes ou faltantes. Ainda que, novamente, não referencie a arte como mecanismo de manipulação, e seja neste caso, a arte, ela própria tomada politicamente como instrumento de manobra ideológica.
Agora, uma sensibilidade artística da "arte como expressão possível humana", arte em termos antropológicos, deve ser sim, educada e apropriada por todas as classes, inclusive para viabilizar a leitura crítica da arte vigente, ou criação de capacidade para expressão própria de resistência periférica como resistência. Essa é uma conquista relativamente nova na história (veja abaixo), e inclusive o movimento inverso ocorre, onde indústrias do entretenimento realizam essa apropriação de códigos semióticos da periferia para a centralidade comercial, como foi com o Rap, o Funk carioca, em paródias comerciais destituídas de seu contexto social. O cinema reflexivo acaba, como citei, relegado a fetiche cult de elite. Não devemos ignorar sua função como plataforma de resistência, como vemos nas famosas cartas trocadas entre Bloch, Brecht e Lukács, justamente sobre o papel da arte como instrumento de revide e progresso, especialmente naquele período dos 30, da apropriação da arte como ferramenta de propaganda.

Quando ocorre a distinção de uma elite intelectual por meio da arte, afinal?
Na estética, não na arte. A estética é a variação das regras no interior do texto artístico, e por meio dela se faz a distinção. Assim, o discurso da arte pode se tornar também (e não limitado a) recurso de distinção de elite intelectual. Eu teria prontamente concordado com a frase de Rita, apenas pela troca de um termo, em que se deixasse de lado a palavra Arte e empregasse a palavra “a estética", na mesma frase. Ficaria como segue;
(a estética) é um efeito discursivo, produzido por uma elite, para preservar seus valores e seus significados como superiores aos demais
A diferenciação entre arte e arte decorre da diferenciação estética. Seguindo dessa versão renomada da frase, arte como instrumento discursivo utilizado intencionalmente como distinção, por meio da estética, como prevista no famoso trabalho de mesmo título (a distinção) por Bourdieu, tem ainda uma separação muito interessante e mais abrangente que engloba três níveis, como o que ele chama de "marcadores de privilégios de classe":
da "não arte",
da "arte legítima" e
da "arte erudita".
A critério de exemplo, a classe média considera acesso à estética da arte legítima, mas esta arte legítima tem em sua estética uma oposição à não-arte (cultura pop), e a arte erudita (puramente acadêmica), que segundo Bourdieu, a classe média julga simplesmente como sendo pedante. A arte legítima é um conceito popular de classes médias, que engloba uma estética específica e que fica entre a cultura pop, tida como lixo industrial, e a cultura erudita, tida como distanciada, vazia, fria e pedante. Evidentemente o discurso de todas as três gradações depende de uma educação institucionalizada e política do olhar estético, seja para assentamento ou para crítica.
Existe ainda a questão da criação artística com relação à sua referência histórica e contextual social. Os bens meramente culturais de comércio não possuem quaisquer vínculos ou obrigações de representação das realidades sociais nas quais os próprios artistas vivem, e essa dissociação ocorre no próprio processo produtivo. Pense nas indústrias do cinema que se fazem valer de produtoras de animadores do mundo inteiro, programadores da índia, estúdio de modelagem da Finlândia, sonorizadores da Inglaterra e banco de imagens da Croácia. Tanto faz a origem material da expressividade, porque o produto final, ele próprio é desenraizado e embarca no mercado internacional como um shopping, igual em todos os lugares, familiar a todos, pertencente a ninguém. Aqui estão os artistas chamados por Bourdieu como naif, os que se eximem das responsabilidades inerentes de qualquer enunciação cultural no curso de sua criação. O cinema Brasileiro com intento de americanização, seria um bom exemplo.
A arte como plataforma é um instrumento de emancipação, de complexificação e instrução crítica para tomada do mundo como espaço criativo. É fundamental a apropriação e popularização das artes, desde a infância, promulgada antes de tudo como ferramenta de expressividade, para que ela não seja sempre apreendida como algo a ser evitado. Afinal, a estética, derivativa da arte, é justamente o campo de diferenciação e segregação que deve ser enfrentado.
Marcos, queria muito te agradecer por todo o conteúdo incrível que você cria e compartilha. Sou estudante pré-vestibulando e tenho muitas dificuldades, especialmente em redação, Ciências Humanas, Linguagem e Filosofia – áreas que sempre foram um verdadeiro desafio para mim. Desde que comecei a acompanhar seu trabalho, tenho sentido uma melhora enorme. Você me ajuda não só a adquirir vocabulário, mas também a organizar minhas ideias, construir argumentos e me expressar melhor, seja escrevendo, falando ou até mesmo discutindo temas mais complexos.
O que mais admiro no seu conteúdo é como ele se destaca no meio de tanta futilidade que encontramos na internet. É rico, acessível, didático e tem me ajudado a superar barreiras que pareciam impossíveis. Graças a você,…
Excelente texto! Nos coloca a pensar sobre nossa relação com as manifestações artístico-estéticas que nos rodeiam. Porém, tenho certa dificuldade em classificar quaisquer dessas manifestações como "não arte" por terem um objetivo comercial mais claro. Um exemplo clássico é o quadro *São Mateus e o Anjo* (Caravaggio). Essa obra teve sua primeira versão rejeitada pela Igreja (patrocinadores, portanto, produtores executivos), porque não refletia as ideias/mensagem que o corpo eclesiástico tinha (apesar de ser biblicamente precisa). A segunda versão, com características mais solenes e grandiosas, foi aceita. Nesse caso, não consigo enxergar a versão como "não arte", apesar de ter sido claramente direcionada por pessoas que não, unicamente, o artista. Muitas outras obras nasceram a partir de uma demanda financeira: cantatas…
Um texto nescessário para a diferenciação de arte e estética.
Vou aproveitar para me aprofundar no assunto. Obrigado