O voto da máquina
- Marcus Bruzzo
- 13 de set. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de jan.
Pela primeira vez na história, nos deparamos com uma “espécie” que disputa a legitimidade das decisões com a espécie humana: a inteligência artificial.

Até o momento, segundo a história natural, a humanidade foi a mais inteligente de toda a história — certamente nos últimos 10.000 anos. Contudo, isso pode mudar agora, e ainda não sabemos ao certo quais serão as consequências dessa transformação.
Digo que isso pode mudar porque estamos diante de mudanças tecnológicas profundas, que viabilizam algo inédito: a criação da inteligência artificial. Nunca antes vivenciamos um fenômeno com a mesma dinâmica e proporção. Do ponto de vista filosófico e semiótico, a IA surge como uma ferramenta revolucionária de comunicação e organização de ideias, afetando de forma significativa a “semiosfera” — a esfera de sistemas simbólicos e de significação humana.
A grande novidade aqui é que a IA pode se apresentar, pela primeira vez na história da nossa espécie, como um possível competidor intelectual. No entanto, é importante esclarecer minha posição: a discussão sobre se a IA possui ou não consciência é, para mim, irrelevante. Essa questão pertence, provavelmente, aos domínios da ciência, com autores como Roger Penrose e Miguel Nicolelis oferecendo suas perspectivas, além das discussões iniciadas por John Searle no passado. Mas, em termos culturais, essa discussão não importa.
O que realmente importa, no contexto da cultura humana, é o impacto da IA e a maneira como nos relacionamos com ela. A IA já traz consigo algo inédito: a autonomia na simulação do pensamento. Desde que essa simulação seja convincente o suficiente, vamos interagir com ela como se fosse real.
A capacidade da IA de usar a linguagem natural — a mesma que usamos no dia a dia — para simular emoções, entonações e sentimentos, e sua iminente evolução, reforça a ideia de que, do ponto de vista epistemológico, não importa se ela tem ou não consciência. O impacto é o que importa. A IA começa a agir como um agente social, uma entidade que parece ocupar seu lugar na sociedade, pertencendo a um tempo e um espaço.
Durante os últimos 100.000 anos, ou pelo menos nos últimos 10.000 anos, fomos a espécie dominante em termos de inteligência. Nosso cérebro, com todo seu custo biológico — como Yuval Harari bem lembra — construiu a humanidade e transformou a realidade em uma realidade humana. Podemos afirmar com segurança: valeu a pena.
Agora sabemos que criamos recursos tecnológicos para suprir nossas limitações físicas, como na produção de alimentos, onde a inteligência transforma a realidade, originando a agricultura e provendo sustento para nossa espécie. Essa capacidade intelectual também deu origem à tecnologia, incluindo a inteligência artificial, que é algo inédito na história: uma tecnologia com autonomia de pensamento.
Mesmo que seja uma simulação ou um programa estatisticamente treinado, a IA toma decisões de forma autônoma durante uma conversa e, hoje, já é capaz de aprender proceduralmente — ou seja, adaptar-se no decorrer de uma ação. Com características que definem o aprendizado, como a capacidade de se modificar sozinha, a implantação dessa tecnologia em nosso cotidiano trará impactos ainda imprevisíveis.
Uma espécie que disputa legitimidade de decisões com a espécie humana
Pela primeira vez na história, encontramos uma “espécie” que disputa a legitimidade das decisões com a espécie humana: a inteligência artificial. Embora não seja uma inteligência biológica — já que a inteligência, por definição, é uma característica biológica — , a IA simula o pensamento de forma tão eficaz que coloca a humanidade em uma situação inédita: questionar a legitimidade de uma decisão externa à inteligência humana.
Até hoje, todas as disputas intelectuais e políticas ocorreram dentro dos limites da inteligência biológica. Pense na Revolução Francesa ou em qualquer grande conflito político, onde sempre houve uma competição entre visões de mundo formuladas por seres humanos, dentro de um mesmo nível de lógica. O materialismo, por exemplo, foi uma derivação lógica da dialética hegeliana, e a sucessão de governos e modelos políticos sempre envolveu conflitos internos à nossa espécie.
Até hoje, todas as disputas intelectuais e políticas ocorreram dentro dos limites da inteligência biológica.
Agora, nos deparamos com uma nova disputa: a legitimidade de diferentes formas de saber que analisam o mesmo objeto, mas que provêm de formulações lógicas distintas — e, possivelmente, com diferentes capacidades. Imagine um parlamento, onde, além de humanos, uma IA também tem direito a voto. Todos os votos humanos são influenciados por limitações de conhecimento e vieses pessoais, históricos e culturais. A realidade política, então, é construída com base nesses vieses.
Agora, imagine um cenário futuro em que, em dez anos, introduzimos uma IA com poder de voto no Congresso. Essa IA teria acesso a um volume praticamente infinito de dados históricos e, com base em uma lógica precisa, votaria sobre questões políticas. Surge a pergunta inevitável: o voto de uma máquina pode ter o mesmo valor que o de um ser humano? Ou, ainda, seu voto seria mais legítimo por ter uma visão mais abrangente, baseada em dados?
Essa é a disputa pela legitimidade entre a inteligência artificial e a biológica, que coloca, pela primeira vez, esses dois modelos de inteligência em competição. A ética humana é construída a partir da soma de infinitos vieses individuais. Qual seria a legitimidade de uma máquina, que não pertence à história social, opinar sobre questões humanas? Uma IA pode votar, mesmo sem sentir emoções? Afinal, tudo o que a humanidade fez foi moldado por um turbilhão de emoções humanas, o que faz com que as decisões humanas, mesmo quando erradas, sejam reais.
A verdade, como um conceito humano, pode ser extraída de algo não humano? Ou é uma condição intrinsecamente ligada à nossa percepção do mundo? O ponto é que, daqui em diante, a humanidade enfrentará cenários onde disputará a legitimidade de sua própria visão de mundo com uma nova forma de percepção.
E então, vamos descobrir se cederemos à verificação da verdade para além da nossa verdade humana — a única que, até agora, conhecemos.
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Será que teremos um IA que irá governar o mundo e que ninguém terá o domínio sobre ela, e consequentemente seremos escravos de uma IA, futuramente?